Dia desmanchado

SOBRE O ESPETÁCULO



Um homem, exterminador de insetos, vive em sua casa mergulhado na banalidade do seu cotidiano, quando é surpreendido com a chegada da carta de uma mulher. A carta põe o homem em alerta, obrigando-o a ensaiar o esperado encontro, na tentativa de que nada fuja do seu controle. O encontro deve ser bem sucedido, pois não é sempre que o amor bate à sua porta. Nessa realidade de espera e angústia, onde o ensaio para o encontro é uma corrida contra um dia que avança sem piedade, o homem se vê magicamente contraído por outros aspectos do tempo. O dia do homem assim se desmancha em tempos incompossíveis e contraditórios, onde não se sabe ao certo o que é passado, presente ou futuro.



                        














Um homem ensaia em sua casa o encontro com uma mulher. Essa é a situação central do espetáculo Dia Desmanchado, livremente inspirada no texto O ensaio, de Benjamin Bradford. 

Um dia aparentemente comum na vida de um exterminador de insetos - o acordar, tomar café, trabalhar e voltar para casa - é cortado em fissuras que levam para outras dimensões de tempo, além do linear e cronológico. Nesses cortes o presente, o passado e o futuro se atravessam, provocando múltiplas possibilidades nos acontecimentos. Através da ação do ator o tempo se multiplica, anda de trás pra frente, paralisa e acelera. Todos os elementos do espetáculo: a ação do ator, a música, a luz, os objetos e o espaço cênico dançam em conjunto, compondo uma teia de momentos emancipados do cotidiano.

Neste espetáculo atuamos em uma certa conduta autônoma do tempo. Um tempo virtual, vertiginoso, mais próximo da alucinação que da realidade. Um tempo múltiplo, que instala uma disjunção incessante e infinita na vida do homem, gerando no espectador, por sua vez, diversas possibilidades de leitura e fruição.
A ação do ator é extra-cotidiana, com gestos não naturalistas, próximos do grotesco e da estilização. As ações foram construídas com base nos princípios da Biomecânica Teatral de Meyerhold, a partir do repertório técnico que o ator Marcelo Bulgarelli vem praticando junto ao Centro Internacional de Estudos em Biomecânica Teatral de Meyerhold, em Perugia, Itália, com o mestre Gennadi Bogdanov, discípulo em segunda geração do encenador russo Meyerhold.  

O cenário é composto de poucos objetos, oferecendo ao ator a livre movimentação: uma mesa, uma cadeira e duas tapadeiras de pano móveis, utilizadas em funções diversas, como paredes, janelas ou portas. O cenário e outros objetos também recebem o mesmo tratamento da ação, sugerindo um ambiente não naturalista, valorizando a teatralidade como se fossem saídos de uma pintura, com pinceladas e tons inspirados pelo o universo onírico das obras de Chagall. 

Como referência na linguagem meyerholdiana, buscamos a criação de diferentes mecanismos para a execução das ações e movimentações do ator, explorando diversos planos, maneiras e formas de dispor a ação no espaço, criando uma extensão definida, exata, precisa. A mesa, as paredes, a cadeira e outros objetos são usadas pelo ator que os transforma e recria a cada instante, conforme sua necessidade e jogo da cena. O espetáculo pode ser apresentado em qualquer lugar com as dimensões mínimas necessárias à essa movimentação. 

A trilha sonora original é um elemento de grande importância, pois dialoga integralmente com cada pequena ação do ator, proporcionando atmosfera e sustento rítmico para a cena. A trilha acontece estreitamente vinculada à ação, não somente sublinhando a atmosfera, mas em alguns casos, provocando e interferindo na ordem dos acontecimentos. Ela também enfatiza o jogo de cena, caracterizado pelo duelo do ator com o tempo, em relação com o público e o espaço. A trilha sonora composta principalmente sobre uma base de piano, é permeada por diversos instrumentos característicos de outras culturas, com referências às músicas do mundo, provocando às vezes estranheza às vezes consonância entre memória e devir.

A iluminação busca uma atmosfera não real, onírica, ficcional. Teatralidade e fantasia entrando em contraste com as situações reais apresentadas na temática do espetáculo. A iluminação interfere diretamente na leitura do espectador, imprimindo contrastes nos momentos das rupturas da narrativa, que transportam a outros aspectos do tempo. Também nos momentos de contrarregragem, numa menção ao momento presente do teatro, a luz induz a um hiato, a um não lugar, a um não tempo, que fluem independentes dos acontecimentos da representação. Tal recurso também instaura o distanciamento que permite a reflexão crítica do espectador, estimulando sua testemunha ao jogo cênico.

O figurino, inspirado em um auto-retrato de Frida Cahlo, enfatiza o jogo de sombra e luz que as dobras reais do tecido propõe, sugerindo uma figura destacada da realidade banal, como uma manifestação imanente de seu aspecto sígnico. Outra fonte de inspiração são os figurinos usados por Buster Keaton, com uma vestimenta básica e clássica masculina, mas que permite a livre movimentação do ator.

Assim, nessa simultaneidade de tempos incompossíveis, num Dia Desmanchado, o café da manhã se torna uma luta entre os objetos da mesa, um sonho noturno irrompe na vigília, com a respiração de um inseto humano, a entrada diária no apartamento se torna uma fuga frenética, o ensaio para o encontro bifurca-se em caminhos indecifráveis, nos quais o espectador é quem decide se o esforço valeu ou não a pena. Tudo se mistura e se multiplica numa multifacelamento do tempo e do espaço. Um universo fantástico floresce, onde não se pode mais dizer o que é realidade e o que é vertigem, ou o que é presente e o que é caos.

O espetáculo, que realizou com sucesso sua temporada de estreia em outubro de 2010, ganhou o prêmio Açorianos de melhor ator e melhor trilha sonora original, sendo indicado a melhor espetáculo e iluminação do ano.