Na quarta-feira, dia 23  de março, a peça “O Dia Desmanchado” do Grupo Torto de Porto Alegre  apresentou-se em Montenegro, com a bela atuação de Marcelo Bulgarelli. A  proposta da dramaturgia era a de trabalhar a interpenetração das  diversas temporalidades no instante, da intersecção do presente, do  passado e do futuro no momento fugidio do aqui e do agora. Não se  resolvia apenas na finitude que caracteriza fundamentalmente nossa  condição humana, mas nas diversas camadas de tempo que se cruzam em  nossas ações. A espera, a projeção de um encontro amoroso futuro,  modifica nosso comportamento no presente, destila potencialidades de  sentido ocultos em nossos gestos, sobredetermina a relação que mantemos  com os objetos que nos rodeiam. Do mesmo modo, a rememoração das  potencialidades não realizadas do passado altera nossa visão do presente  que busca realizá-las no futuro. É isso que W.Benjamin tem em mente  quando fala das potencialidades de emancipação que as revoluções  passadas frustradas guardavam no seu interior e que devem ser  atualizadas no futuro. Não se trata de que o presente guarda o passado e  projeta o futuro, mas de que o presente só existe na medida em que ele  se lança para frente de maneira a tomar consistência; do mesmo modo, o  passado só adquire sua necessidade retrospectivamente, ele é postulado a  partir de uma posição vazia e contingente. Após o surgimento do evento  amoroso, todos os acontecimentos passados adquirem um novo contorno como  se tivessem existido apenas para dar origem a este evento. Um outro  exemplo pode ser apanhado do lado da função do olho humano: ele não  apenas capta a forma de um objeto exterior, mas inscreve aquilo que ele  realmente vê em uma trama de recordações e antecipações que ampliam a  gama de sentidos dessa realidade vista. A realidade nunca é percebida  puramente, pois, ao contrário da opinião padrão, ela não é fechada,  imóvel, autoconsistente. Ela é permeada de inconsistências, falhas e  lacunas que são preenchidas pela fantasia, isto é, a realidade, anterior  à percepção consciente, é um fluido incessante de potencialidades que  são coaguladas, que a fantasia reduz uma realidade positivamente  constituída.  No entanto, gostaria de ressaltar,  não tanto as técnicas e princípios da biomecânica que orientaram o  processo da peça – cujo conteúdo desconheço, e que são muito bem  dominados por Marcelo – mas de dois aspectos correlatos a estes  princípios. Como Marcelo enfatizou, a composição da sua atuação tomou a  partitura musical como modelo, sendo que suas ações são ritmadas,  construídas segundo um compasso temporal que se repete e varia nas  diversas cenas. Contudo, o primeiro aspecto que gostaria de destacar diz  respeito à desestruturação do corpo, ao “desmanche” do organismo em  órgãos autônomos. A mão e a perna que se destacam do corpo, que ganham  uma certa independência com relação à vontade subjetiva do personagem,  não podem ser encaradas como expressões da personalidade solitária e  sonhadora que viveria em uma temporalidade mecânica e vazia. A mão e as  demais partes do seu corpo que o carregam a despeito de sua  intencionalidade racional indicam a separação dos órgãos de sua  organicidade imaginária (eu sou aquele que controla os seus movimentos)  de modo que eles flutuam ao seu redor, manifestando uma intensidade  mecânica que se move para além do sentido, que não podem ser  relacionadas com alguma identidade psicológica do personagem. Uma  intensidade flutuante, o fato dos órgãos desse corpo funcionarem de uma  maneira desprovida de intencionalidade consciente, é algo desprovido de  significado e que só ganha alguma consistência em virtude de sua  repetição (aí sim pode-se identificar algum sentido ou perceber alguma  tonalidade afetiva neles). Pois qual seria o significado social, o  contexto narrativo, que desvendaria o sentido dessa repetição de gestos,  desses órgãos separados e autônomos? Seria a representação da alienação  do sujeito imerso em mundo que foge do seu controle, o simples  desespero silencioso da mecanicidade da cotidianidade das vidas? Muitas  das cenas da peça lembram a comédia de palhaços em que o órgão que se  desprende do corpo representa um excesso, algo que se apresenta em sua  plena autonomização: a mão que continua a abanar mesmo após ter cessado a  intenção do agente, que se agarra aos objetos e não os solta, que se  volta contra a própria pessoa procurando matá-la, etc. E isso acaba  introduzindo o segundo aspecto que gostaria de ressaltar rapidamente: a  desintegração da fantasia, da ilusão que sustenta a realidade, que dá as  coordenadas que nos permitem movimentar entre os objetos,  reconhecê-los. É bom ressaltar que a fantasia está sempre do lado da  realidade, é aquilo que dá à realidade a sua consistência e sua ilusão  de plenitude; ao mesmo tempo é aquilo que nos diz como desejar, quais  são os objetos do nosso desejo. Bom, o que resta depois que a fantasia é  desmanchada, em que o encontro amoroso e os preparativos fracassam?  Nada, um espaço vazio em que as coisas circulam e continuam a assombrar o  sujeito. Ou talvez a aparição da mosca gigantesca em seu sonho seja a  indicação do encontro traumático com um Real que permanece o núcleo não  diluído, não desmanchado desse dia que, na sua repetição, sempre  introduz algo novo, descobre camadas temporais insuspeitas no presente.
Postado por André Susin - Mestre em Filosofia UFRGS. Ator e músico do Grupo Válvula de Escape
 
 
